
Caixa de brinquedos 01 - Arte & Produto
Atualizado: 8 de jun. de 2020

Durante cinco anos da minha vida trabalhei efetivamente como designer de
produto, mais especificamente de produtos promocionais. Nunca foi meu
plano explorar essa área que, pra falar a verdade, eu nem suspeitava que
existia. Meu objetivo é, além de registrar memórias sobre um momento
importante da minha existência neste planeta, refletir sobre observações
interessantes que fiz ao longo dessa pequena jornada. Tudo o que é escrito
aqui corresponde apenas à minha opinião baseada em experiências
pessoais; logo, não existem verdades absolutas.
O início da minha jornada foi completamente aleatório e recheado de
frustrações consecutivas. Antes de entrar na faculdade, eu só queria
desenhar e tocar guitarra. Nada mais importava. Por falta de pesquisa,
confesso, acabei entrando no curso de Publicidade Propaganda e não
demorou muito para eu me frustrar completamente.
Migrei para Design Gráfico, pois achei que era o mais próximo de artes, e fui
até o fim. Apesar de ter concluído e aprendido muitas coisas importantes, não
era bem o que eu imaginava para minha vida, e, como vivemos num mundo
capitalista com competições acirradas, tive que arrumar um emprego, com
urgência, logo no meu primeiro ano de faculdade. Passei por um estágio
numa agência especializada em criar identidade visual para clínicas
odontológicas, mas não gostei e saí em três meses. Me inscrevi em seguida
para uma vaga de design que chamava pretendentes com apenas os
seguintes dizeres: Vaga para designer. O site da empresa era, sem querer
ofender, primitivo, e me candidatei sem entender muito o que faziam. Apenas
depois de concluir a prova-teste e chegar na entrevista final é que descobri
que o complemento “de Produto” estava oculto no anúncio da vaga. Para meu
espanto fui contratado, mesmo com quase nenhum conhecimento na área.
Aparentemente, ilustrar foi o grande diferencial.
Fiz toda essa volta apenas para situar que, neste mundo, um cara que
apenas sonha em ser artista pode cair de paraquedas de uma altura
vertiginosamente alta, num mercado muito restrito e competitivo de produtos
promocionais, e isso não pode ser previsto de forma alguma.
Coloque-se na seguinte situação: você adora desenhar e se expressar, não
tem quase nenhum alcance, ainda está em começo de carreira e gostaria que
suas criações chegassem a mais e mais pessoas. De repente você tem a
oportunidade de desenhar coleções de brinquedos para grandes empresas e,
assim, seu trabalho entrará em contato com milhões de pessoas. Parece
lindo, não é mesmo? Mas existe um fator decisivo. Nenhum brinquedo será
baseado em personagens seus, pois serão usadas apenas licenças famosas,
e ninguém saberá quem desenhou tais produtos. Continua achando lindo?
Eu tenho completa consciência de que a impessoalidade está mais presente
do que deveria em nosso mundo, onde empresas e personagens são mais
importantes que pessoas, e quem realmente faz as coisas acontecerem e
funcionarem está sempre nas sombras. Contudo, acredite: eu não estou
reclamando! É um baita privilégio poder trabalhar desenhando para grandes
marcas. Tive a honra desenhar coleções de Barbie, Homem-Aranha, Scooby
Doo, entre muitas outras, e isso é incrível, mas essas marcas não têm
relação alguma com minha identidade, o que é muito significativo pra alguém
que só queria fazer arte.
Ao longo do tempo eu enxergava o quanto me fazia falta dizer simplesmente
o que eu queria, mesmo que não fosse mudar a vida de ninguém. Isso
infelizmente estava ficando de lado devido ao excesso de trabalho. Foi com
essa experiência que eu notei também que alcance numérico é uma grande
ilusão. Aqueles números colossais de vendas não me retribuíam com
nenhuma resposta humana, nem com um simples sorriso. O único feedback
que números podem prover é com outros números, mas o que eu quero vale
muito mais que isso.
Por conta de um brinquedo demorar de quatro a doze meses para existir,
devido aos processos de fabricação, era muito raro eu presenciar algum tipo
de feedback, mas algumas vezes me deparava com vídeos no YouTube em
que crianças mostravam o quanto gostaram, ou nem tanto, de um produto
que desenhei, e isso me proporcionava pequenos momentos de satisfação
que contradiziam a impessoalidade dos números: “É isso! Que incrível! Não
achei que meu trabalho pudesse fazer crianças sorrirem! Outras crianças
sorriam? Mas então isso é arte? O que é arte? Eu estou fazendo arte?
Produto é arte? Por que é importante pra mim ter o rótulo de artista?”

Durante o processo de concepção de um produto, muitas coisas acontecem.
Pretendo falar detalhadamente sobre isso em outro momento, mas para esta
discussão em específico é importante enfatizar algumas características muito
interessantes. É importante salientar também que, quando me refiro a
produto, estou falando de objetos 3D, normalmente de plástico e
normalmente brinquedos, não abrangendo o total significado da palavra.
Um projeto de produto possui muitos pais e mães, pois não é algo que se faz
sozinho. Mesmo que o conceito nasça de uma única pessoa, é
completamente injusto se autointitular autor num processo que, para existir,
passa por tantas áreas diferentes nas mãos de tantas pessoas. Ter vários
autores e colaboradores descaracteriza a arte?
Um projeto de produto passa muitas vezes por alterações vindas do próprio
cliente, justificadas com argumentos duvidosos ou por gostos pessoais.
Sofrer interferência de terceiros, contra sua vontade, desqualifica a arte?
Um projeto de produto, na maioria das vezes, carrega o nome de uma
empresa que não é sua e traz personagens que não são seus, mesmo que
você tenha decidido o conceito e as funcionalidades originais dele. Usar a
chancela de uma grande marca desqualifica a arte?
Um produto nasce com diversos objetivos. Para o cliente, significa aumento
nas vendas. Para o fabricante, significa lucro. Para a criança que recebeu,
significa alegria e satisfação. Para mim, um produto sempre nascia com o
objetivo de ter sentido, contar alguma história, ter excelência em sua função
de divertir e levar com ele um pouco da minha identidade. Não atingir minhas
expectativas desqualifica a arte?
Quando o receptor final entra em contato com o produto, talvez ele veja
apenas um brinquedo, um objeto de plástico que usa a máscara de uma
marca conhecida. Pode ser que o cliente final crie memórias afetivas sobre o
produto devido à situação em que estava no momento, como o aniversário de
um filho, por exemplo. Ou pode ser que ele simplesmente jogue fora depois
de um tempo. Os engenheiros vão lembrar do quanto foi árduo fazer a asinha
da boneca funcionar corretamente e lembrar de todas as vezes que tiveram
retrabalhos. O vendedor vai lembrar do quanto foi difícil, ou fácil demais,
convencer o cliente de que aquele conceito seria o melhor caminho para o
produto e assim por diante. Eu, em específico, vou lembrar de todas as
dezenas de conceitos que foram rabiscados até chegar na versão final, todas
as alterações que fiz, mesmo não concordando, todas as brigas que comprei
para que conseguir manter as qualidades primordiais do produto, as decisões
para manter o brinquedo seguro e bonito, o pouco de mim que consegui
adicionar e a satisfação de ver no mundo real, em três dimensões, o que era
apenas um conceito. Se isso não é arte, o que é isso?
Quando comparamos arte e produto, pensamos logo que são coisas
completamente distintas e para muitos arte será sempre um conceito
superior. Se formos até a raiz da palavra, a arte também é um produto, pois é
resultado de estudo, experiências, gostos e reflexões. Se considerarmos que
arte é algo exclusivo e artesanal e perderia o sentido se produzido em massa,
todo o meio digital estaria desqualificado de uma vez, por exemplo, e eu não
consigo achar nenhum argumento que sustente essa ideia. A discussão sobre
o que é arte ou não, a meu ver, parece uma forma de elitizar o que deveria
ser uma convenção social. Afinal, goste ou não, para fechar um mísero
arquivo de um cartão de visitas é solicitado que “enviemos a arte” e para dar
visibilidade para um hobby, como ilustrações pessoais, é preciso tratá-las e
divulgá-las como um produto de mercado.
Sendo assim, posso finalmente concluir que arte é tudo o que nasce da
subjetividade humana com o propósito de ser arte e basta uma única pessoa
para legitimá-la. Se eu digo que algo é arte e alguém concorda, pronto. Está
validado. E toda essa explicação significa, basicamente, que não importa o
que é arte.
Depois de cinco anos eu enxerguei que, apesar de existirem momentos de
satisfação, trabalhar com produtos num mercado acirrado e competitivo como
o promocional não era exatamente o que eu queria. Mesmo tendo orgulho de
diversos projetos e de diversas decisões que tomei ao longo dessa jornada, o
artista que eu queria ser não estava ali. O artista que eu queria ser nem
existia. O artista que eu tanto queria ser nunca vai existir, pois, se não
importa o que é arte, a única coisa que me importa é o que eu quero fazer.
