Caixa de brinquedos 02 - Segurança é coisa de criança
Atualizado: 8 de Jun de 2020

Devido ao nosso sistema social e cultural, por algum motivo que eu deixo
para os sociólogos, historiadores e psicólogos explicarem, existe uma linha
que separa o que são coisas de crianças e coisas de adultos. Essa divisão
nem sempre é muito clara e racional, mas é normal termos largado algumas
experiências para trás simplesmente porque algum adulto nos disse que já
não tínhamos mais idade para aquilo. A grande maioria das pessoas para de
desenhar, para de jogar videogame, para de brincar, para de contar histórias
e até mesmo de tocar algum instrumento por conta dessa linha imaginária.
Por sorte temos bravos guerreiros e guerreiras que insistiram e perduraram
em seus sonhos. Assim, hoje eles embelezam e tornam nosso cenário
artístico e cultural incrível. Em relação aos brinquedos, se são exclusivamente
feitos para crianças, a atenção e a segurança devem ser redobradas.
Eu raramente pegava os brinquedos promocionais dos fast food quando
criança, mas depois de adulto, com o lançamento de algumas coleções que
me interessavam muito por conta da nostalgia, acabei por gastar mais
dinheiro do que devia nisso (bom, pelo menos posso me considerar um dos
tais bravos guerreiros que mencionei). Algumas vezes eu notava detalhes
que me pareciam imperfeições ou partes “mal resolvidas” no brinquedo e
pensava: “É promocional mesmo, deve ser algo pra baratear o produto”.
Apesar de o fator preço também estar relacionado com as ditas “falhas” do
produto, a segurança é um buraco muito mais embaixo, e apenas quando
passei a fazer parte do time de desenvolvimento de brinquedos é que
descobri todo esse universo extremamente rigoroso e intenso.
A segurança dos brinquedos, hoje, é o principal norte para que o produto
possa nascer. Pelo menos é como deveria ser. Em 80% dos projetos nos
quais trabalhei, alguma limitação ou mudança radical de conceito existiu para
que o brinquedo fosse o mais seguro possível para as crianças. Manuais de
qualidade extremamente rígidos eram a nossa Bíblia. Quando lidam com
crianças, os clientes têm um cuidado extremo e isso é excelente!
Em algum momento da vida alguém já deve ter notado, na mão de uma
criança, alguma boneca pequena com um dos braços fixo apontando para
cima, aparentemente, sem motivo algum. Pois bem, se existe num brinquedo
algum elemento cuja forma seja considerada crítica e represente risco de
entalar na garganta de uma criança, medidas devem ser tomadas. Nesse
exemplo, o braço é posicionado para cima num ângulo específico para gerar
uma passagem de ar, caso a criança tente engolir. Mas segurança é uma
reação em cadeia e, por isso, está longe de acabar. Agora temos um braço
para cima, que é perfeito para uma criança enfiar no ouvido ou morder, então
é necessário encontrar um material que seja rígido o suficiente para não gerar
partes pequenas caso seja mordido e manter sua função de possibilitar uma
passagem de ar. Mas o material deve também ser maleável o suficiente para
que não quebre numa torção e também não gere pontas agudas cortantes.
Fora isso, existem dezenas de testes para detectar diversos tipos de toxinas
e metais pesados que não devem existir em nenhum dos materiais da
boneca, seja na tinta ou nos diversos tipos de plásticos que a compõem. Para
dificultar as coisas, os laboratórios exigem uma redundância de proteção para
cada ponto crítico do brinquedo. O braço da boneca não pode cair, pois seria
uma peça engolível, portanto, além do cogumelo que faz o encaixe no corpo,
é necessário uma trava interna que desempenhe a mesma função caso a
primeira alternativa falhe por algum motivo.
Apesar de existirem centenas de exemplos e situações diferentes que
vivenciei, não quero transcrever a tal Bíblia aqui, mas acho que já dá pra
sentir quão tenso é trabalhar com brinquedos e quão próximos os setores de
design, engenharia e qualidade devem estar.

Em alguns casos, as restrições e regras soam paranoicas, mas isso porque
estamos numa época em que várias lições foram aprendidas na dor. Crianças
morreram para que fossem revistas algumas regras de fabricação. Existem
casos emblemáticos de brinquedos que geraram partes pequenas e
perfuraram o estômago de crianças, ou outros que as cegaram, entre muitos
tristes exemplos. Existe até um caso muito bizarro, acontecido no Brasil, em
que uma marca de chocolate lançou na Páscoa um brinquedo com formato
fálico e que vibrava. Gerou, obviamente, muita polêmica, e o mais irônico é
que nome da marca faz alusão a crianças.
Cinco árduos anos de trabalho com dezenas de situações e projetos
parecidos com o exemplo que dei me fizeram refletir e rever diversos
aspectos que normalmente não são discutidos por aí. Do mesmo modo em
que em algum momento da nossa infância se cria uma linha imaginária onde
algumas coisas passam a ser de crianças, também se passa uma linha
imaginária onde todo aquele cuidado extremo, quase paranoico, que tinham
com sua saúde e segurança simplesmente desaparecem. A partir de qual
momento as pessoas param de se preocupar com a existência do outro?
Será que aquele momento em que a criança deixa o brinquedo pra trás é o
momento em que ninguém mais vai ligar pra ela?
Antes de continuar, preciso deixar claro que meu objetivo não é atacar
nenhuma empresa especificamente, mas sim expor relações que existem aos
montes na nossa injusta realidade.
Por ter feito parte da liderança do setor de design, muitas vezes tive que
aprovar peças em diversas fábricas de segmentos diferentes. Era normal eu
me deparar com fábricas em situações deploráveis onde os empregadores
não se preocupavam minimamente com a saúde e segurança de seus
operários. Lembro-me de uma cena que me chocou muito numa fábrica de
pintura: trabalhadores inalavam tinta diariamente por não usar nenhum tipo
de produção por pessoa que expunha o número de peças que cada um
deveria pintar num espaço de tempo absurdamente curto, sob risco de
punição caso não atingissem a meta. Estava marcado até o número de vezes
que podiam usar o banheiro.
Isso mostra que, além da linha que separa as coisas de crianças e adultos,
existe a linha social e econômica. Se o elemento que faz as pessoas se
preocuparem demais com as crianças é a vulnerabilidade, por que ninguém
liga nem um pouco para esses operários? Aliás, será que essa preocupação
é realmente com todas as crianças? Será que ligam para os filhos desses
operários quando os mantêm sob essas condições?
Foi a partir desse momento que comecei perceber as falhas na matrix,
enxergar as coisas com uma lente mais clara e entender como nossa
sociedade inverteu completamente seus valores. Quando as pessoas
aplaudiam o senhor meu chefe por ter conseguido economizar muito dinheiro
numa operação milionária que renderia muitos frutos para a empresa, elas
não estavam analisando que alguém pagaria por isso. A matemática é exata
e não existem milagres – o preço das coisas nunca é reduzido, ele é
simplesmente realocado, e na maioria dos casos é cobrado das pessoas mais
vulneráveis. Quem pagou caro por essa operação milionária foi o operário
que precisou produzir mais em menos tempo, com menos idas ao banheiro,
por um salário provavelmente miserável.
Quando a gente puxa um pequeno fiapo, a tendência é que ele vá se
desenrolando cada vez mais, então a análise não poderia acabar por aí.
Comecei a olhar pro meu próprio umbigo e perceber que não existe muita
escapatória desse sistema. Com muitas horas extras de trabalho, sob um
stress enorme, me irritando profundamente até com uma mosca, percebia
que eu também estava pagando o pato. Na verdade, em níveis diferentes, a
maioria das pessoas está. Quando investiguei mais a fundo, vi que minha
equipe inteira estava assim, a empresa inteira estava assim, e a sociedade
inteira está assim. Com os valores invertidos e em sofrimento contínuo, ainda
assim, as pessoas glorificam o excesso de trabalho e aplaudem quando
geram muito lucro para alguém que está enriquecendo infinitamente. Sabe
aquela sensação de culpa que você sente quando pede uma folga ou precisa
ir ao médico? Sabe aquela sensação de que, se simplesmente for embora no
seu horário correto, você está fazendo corpo mole e não se empenhando?
Sabe aquela sensação de extrema urgência em que qualquer mínimo atraso
pode resultar na explosão de todo o universo? Isso tudo é uma grande ilusão
e nem percebemos que estamos nos punindo à toa, participando de um
sistema adoecedor.
São centenas de situações que eu poderia descrever, mas não será preciso,
pois tenho certeza de que, não importa quem estiver lendo, lembrará de
situações parecidas em suas próprias vidas.
Depois de cinco anos, quando finalmente tomei a decisão de não participar
mais de empresas e corporações e ser autônomo, fui comemorar a liberdade
com minha esposa. Como uma forma de despedida, fomos a um dos fast
food para pegar os brinquedos de uma das últimas campanhas de que
participei e notamos mais uma ironia que estava bem de baixo do nosso
nariz. Tantas preocupações com a segurança das crianças e o que mais
poderia ser prejudicial a elas era o próprio lanche gordurento que vendiam.
Mais tarde, no mesmo dia, olhei as pilhas de cadernos de desenho no meu
armário e bateu aquele sentimento bom de nostalgia, pois, naquela época, eu
não precisava de mais nada. Um papel e um lápis estimulam muito mais a
imaginação de uma criança do que qualquer brinquedo. Aliás, qualquer
pedaço de pau vira uma ponte mágica ou um super-herói na mão de qualquer
criança. Com tudo isso, surgem algumas dúvidas: brinquedos são realmente
coisas de criança? Será que são simplesmente porque algum adulto disse
que era, provavelmente para vendê-los? Será que alguém se preocupa
realmente com as crianças? Será que alguém se preocupa com você na
mesma intensidade com que você se preocupa com o seu trabalho?
É muito difícil enxergar a matrix e é praticamente impossível sair dela, afinal,
quanto mais cavoucamos, mais camadas encontramos. O segredo é estar em
eterna desconstrução e procurar evoluir o nosso pensamento através do
simples exercício de nos perguntarmos por que fazemos o que fazemos e
qual é o impacto das nossas ações, por menor que seja, na vida dos outros.
Já adianto que não é uma tarefa fácil, pois, às vezes, quando parece que
estamos prestes a encontrar uma saída, damos de cara com um enorme
muro que, de longe, não podíamos enxergar. Mesmo encontrando algumas
falhas na matrix, algumas vezes, o contraditório é inevitável e indispensável,
pois sozinhos não temos força para mudar absolutamente nada e precisamos
garantir a nossa sobrevivência. Se cada indivíduo, ao traçar seus objetivos e
desejos, considerar o impacto de suas ações, mesmo que pequeno, o
coletivo poderá garantir que nenhuma criança precise mais ter medo de largar
seus brinquedos e crescer em segurança!
